Habituado aos rompantes das emergências, Carlos Fernando Drumond Dornelles,
34 anos, precisou de apenas sete minutos, a partir de um telefonema às 3h43min,
para deixar a cama e chegar à boate Kiss. Naquela madrugada de folga, o uniforme
do socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) estava, como de
costume, ao lado da cama.
— Não vi muitas pessoas feridas — comentou o
taxista no trajeto de quatro quadras.
Médico formado pela Ulbra com
passagem pelo Exército, Dornelles comprovou com o que via as palavras do colega
Pedro Copetti ouvidas pouco antes: tragédia, desastre, feridos, terrível. De
estetoscópio na mão, penetrou o caos que orbitava a porta da casa noturna
expelindo fumaça, uma desordem de sirenes, bombeiros e sobreviventes, aos
tropeços, carregando mortos e queimados.
— Muitos caminhavam como se fossem zumbis, manchados, com
falta de ar — lembra o socorrista.
Logo avistou os companheiros de Samu.
Com a experiência de uma missão de seis meses no Haiti, após o terremoto de
2010, o sepeense começava, perto das 4h de 27 de janeiro, o mais penoso de seus
dias de trabalho. A jornada de um dos personagens centrais do salvamento,
responsável por uma intrincada e eficiente logística de transporte aéreo e
terrestre, estenderia-se pelas 25 horas seguintes.
— Penso toda hora no
que aconteceu. Vai fazer parte de mim para sempre.
Mentalmente,
ele organizou o vaivém das ambulânciasDornelles auxiliou
Copetti a entubar um menino com insuficiência respiratória grave. Voluntários
depositavam mortos e desacordados às portas da ambulância, num vaivém
desesperado que não aceitava negativas.
— Jogaram duas meninas em óbito.
Pedimos para que as retirassem, para botar gente que estava viva, mas eles não
admitiam — conta.
Veículos civis paravam para oferecer ajuda. Em um táxi,
foram colocados um ferido no assento do carona, dois no banco de trás e um no
porta-malas. Solicitado a todo momento, Dornelles tomou a primeira decisão
fundamental para o sucesso do esquema que ajudou a coordenar e que permitiria,
até a noite, encaminhar 38 feridos, por via aérea e terrestre, a 10 hospitais do
Estado. Delimitou uma zona de triagem e convocou policiais para afastar
curiosos.
— Gostaria que todos se afastassem, vocês estão atrapalhando o
atendimento — anunciou ao microfone de uma viatura policial.
Dornelles
organizou mentalmente o fluxo de viagens das 10 ambulâncias que atendiam o
local. Despachava para o Hospital de Caridade, a dois minutos dali, os casos
mais graves. Do outro lado da Rua dos Andradas, começaram a ser dispostos os
cadáveres. Eram 19, por volta das 4h30min. Policiais militares tentavam deter os
mais exaltados, que insistiam em voltar ao interior da boate.
— Está
saindo só gente morta e está entrando gente para morrer. Vamos tomar uma
atitude — disse Dornelles para o enfermeiro Fabiano Miranda.
Às 5h45min,
com capacete e máscara, Dornelles entrou na Kiss para atestar que não havia mais
o que pudesse ser feito. Sob o calor que se assemelhava ao de um "dia de verão
bem quente", identificou uma ex-colega de trabalho com o facho da lanterna. Viu
corpos paralisados na última tentativa de sobrevivência: um rosto enfiado no
vaso sanitário, braços para dentro de um freezer. Na saída, encontrou o prefeito
Cezar Schirmer (PMDB) e o deputado estadual Jorge Pozzobom (PSDB). Alguém lhe
estendeu um celular.
— Qual é a situação? — perguntou um assessor, em
nome do governador Tarso Genro.
— Não tem como precisar. Mandem o máximo
possível de aparato aéreo e equipamentos de ventilação mecânica — respondeu
Dornelles.
Capitão médico do Exército, Claudio Guimarães Azevedo foi
abordado por um colega ao chegar ao Caridade, convulsionado pelo desespero de
jovens em roupas de festa e familiares.
— Eu não acho minha filha, já
procurei por tudo. Me ajuda a procurar a minha filha.
Azevedo se dispôs a
auxiliar o médico em prantos, mas logo foi sugado pelo tumulto. Percebeu que
deveria recorrer às lições de medicina de catástrofe, que jamais pensara que
seriam úteis em um país sem guerras. Convocou profissionais para uma primeira
reunião, às 7h15min. Distribuiu tarefas e rádios portáteis. A Dornelles, delegou
a responsabilidade pela remoção de feridos:
— Você vai sentar naquela
mesa ali. Não levanta dali.
Vagas de UTI foram improvisadas.
Especialistas percorreram os corredores para uma primeira avaliação,
classificando os doentes pela prioridade de transferência. Secretarias de Saúde
de municípios do Interior congestionavam as linhas telefônicas oferecendo
serviços. Às 7h35min, Dornelles contatou a Central de Leitos do Estado, passando
a esboçar, manualmente, o complexo esquema que teria de gerenciar. Acionou
conhecidos na tentativa de eliminar a burocracia.
— Preciso de
aeronaves — comunicou a um tenente-coronel da Base Aérea de Santa Maria, às
7h45min.
— Quantos pacientes? Três, quatro? — questionou o
interlocutor.
— No mínimo 50.
Ao longo do dia, quatro helicópteros
Black Hawk e três aviões decolaram de dois pontos da cidade, orientados pelo
primeiro-tenente aviador Yuri Carneiro de Souza, chefe da equipe de resgate do
Esquadrão Pantera.
Naquela semana, dormiu de duas a três horas
por noite Os primeiros membros da Força Nacional do Sistema
Único de Saúde (SUS), acionada em calamidades, chegaram no início da tarde. Com
a sincronia das esferas municipal, estadual e nacional, somada à profunda
comoção, o atendimento ficou mais ágil. Formalizou-se a centralização das
operações no Caridade, com o Gabinete de Crise. Na opinião de Neio Lúcio
Pereira, diretor técnico do Grupo Hospitalar Conceição, a organização das
equipes locais foi determinante para o sucesso da operação.
— Todo mundo
ficou abismado com o atendimento. Foi uma mobilização total. Se eu tivesse de
dizer um nome chave, seria o do Dornelles. Ele só foi dormir porque o
empurramos — avalia Pereira.
Dornelles estima ter realizado cem ligações
do próprio celular no domingo. Entre chamadas recebidas e não atendidas, conta
cerca de 300. Quando voltou para casa, às 5h15min de segunda-feira, estava
afônico.
Naquela semana, Dorneles continuou coordenando as
transferências, dormindo duas ou três horas por noite. Perdeu cinco quilos.
Acompanhou a última remoção, no dia 11. Em estado grave, Delvani Rosso, 20 anos,
balbuciou "muito obrigado" inúmeras vezes no percurso até o aeroporto. Com
queimaduras em 50% do corpo, o estudante disse lembrar do
incêndio.
— Quem te salvou? — perguntou Dornelles.
— A
ambulância — gesticulou Delvani com os lábios, inaudível, o respirador ligado à
traqueia.
— Ambulância de quem?
— Do Samu.
Surpreso, o
médico afastou a máscara e pediu que o paciente memorizasse suas feições e o
visitasse após a alta. Dornelles acredita que Delvani seja o primeiro rapaz que
entubou ao chegar à Kiss. Ao retornar à base, enviou um torpedo a um dos
profissionais que recepcionaria Delvani na Capital: "Cuida bem desse menino. Ele
nos deixou muito emocionados". Quinze dias depois da tragédia, o socorrista
chorou pela primeira vez.
Ontem, 22 dos 145 pacientes admitidos em 27 de
janeiro permaneciam internados em Porto Alegre e Santa Maria. Delvani, ainda na
UTI do Hospital de Pronto Socorro, mas já respirando sozinho, levantou e deu
três passos.
FONTE:
http://www.clicrbs.com.br/especial/rs/dsm/19,18,4057718,A-luta-pela-vida-no-front-apos-o-incendio.html